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Judiciario questionado por responsabilização de mães em situação de vulnerabilidade
Publicado em 10/04/2025 19:04
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Recentemente, o Projeto Alê Szafir, iniciativa pro bono voltada ao atendimento da população vulnerável, recebeu mais um dos tantos descasos da justiça criminal: a condenação a 35 anos de prisão de uma mulher preta, pobre, analfabeta e socialmente marginalizada, acusada de um crime que não cometeu e que, diante de sua realidade, sequer teria como impedir.

O caso escancara prática preocupante no Judiciário brasileiro: a responsabilização desarrazoada de mães em situação de extrema vulnerabilidade por omissão imprópria, ou seja, por não terem evitado crimes praticados por terceiros contra seus filhos.

Exige-se dessas mulheres uma capacidade de proteção que elas simplesmente não possuem —seja por desconhecimento dos fatos, seja pela impossibilidade concreta de agir no contexto em que vivem.

Por razões de sigilo processual, usaremos aqui nomes fictícios.

Maria, mãe de sete filhos e avó de onze, vivia realidade comum a milhões de brasileiros: sem acesso a saneamento básico, sem instrução, sem renda. No minúsculo barraco onde morava, na mais pobre das favelas paulistanas, não havia espaço para todos dormirem, tampouco comida suficiente para alimentar todas as bocas. Um retrato da miséria estrutural que assola o país.

Como tantas outras nessa situação, Maria contava com uma rede informal de apoio —familiares, amigos e vizinhos que contribuíam como podiam, seja com alimentos, doações ou ajuda no cuidado das crianças. João era um desses. Em sua casa de três cômodos, oferecia abrigo e comida para as crianças quando necessário.

O que Maria não sabia —porque ninguém lhe disse, porque sua realidade a impedia de perceber, porque a miséria e a ignorância a colocavam numa posição de extrema fragilidade— era que suas filhas estavam sendo abusadas por João. Segundo as vítimas, elas nunca contaram à mãe porque, por anos, acreditaram que a violência a que eram submetidas era normal.

Seis anos depois dos fatos e sem encontrar o verdadeiro agressor, o Ministério Público denunciou Maria por estupro de vulnerável, sob a alegação de que, como mãe, "tinha pleno conhecimento das agressões" e, mesmo podendo agir, "optou por se omitir".A condenação veio mesmo diante de provas concretas de que Maria desconhecia o que acontecia na casa de João. Mas, segundo a juíza, era "claro que sabia". Afinal, era mãe. E ser mãe, para o sistema de justiça, significa estar sempre ciente, sempre vigilante, sempre responsável.


E o pai? Era ausente. Morava em outra cidade, não via as filhas. Mas ninguém sequer cogitou que tivesse cometido qualquer crime.

O caso, por mais absurdo que pareça, não é isolado. O Judiciário tem imposto a mães pobres e vulneráveis um dever de vigilância e proteção que elas, na sua mais absoluta precariedade, não têm meios de exercer.

Espera-se que saibam, que desconfiem, que percebam e que ajam para impedir o crime —ainda que suas próprias condições de vida as tornem incapazes de identificar ou reagir.

São milhares de Marias espalhadas pelo Brasil. Algumas não percebem os abusos; outras até os identificam, mas não têm meios de agir. São mulheres que vivem sob violência doméstica, dependência financeira, controle psicológico e ameaça. São mulheres esquecidas pelo Estado, mas cobradas por ele com rigor e excelência.O dever de agir só pode ser exigido de quem tem condições reais de cumpri-lo. Preocupa ver que o sistema judicial transforma em "omissão penalmente relevante" o que, na verdade, é vulnerabilidade extrema e desamparo social. E assim, o Estado lava as mãos.

Fonte:folha.uol.com.br | 10 de abril de 2025 

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